03/12/20

A luz do mundo antes de o mundo existir

 


novembro'18



Obcecam-me certos filmes dos anos 70, a época imediatamente anterior ao meu nascimento. Sei exactamente o que me agrada nesses filmes: a fotografia limpa, vívida, incontaminada. Assisto a estes filmes como se pudesse apreender-lhes a luz impossível, saturada, sobrenatural, com uma vibração indecisa de aguarela, obsidiante às vezes como pintura flamenga. É, parece-me, a luz do mundo quando o mundo ainda me oferecia todas as possibilidades, incluindo a de não nascer. A luz do mundo antes de o mundo existir. 
É um regresso claro ao ventre materno, ao escuro aconchegante de onde assisto à minha vida, onde encontro rostos e paisagens, mas sem risco, sem a inconveniência do toque, das relações que degeneram, sem ambiguidades que não sejam líricas e metafísicas.
É uma linha adjacente, um desvio vizinho à carne, uma imaginação extrema da carne enquanto a carne não nasce, não chegue talvez a nascer.
A busca incessante por certo tipo de imagens, pelas que correspondem ao meu prazer, é reacionária, uma rejeição da vida e do momento presente, um retrocesso coberto de mistificações. Uma cobardia, portanto.

Andreia C. Faria in Clavicórdio



2 comentários:

  1. Que post encantador! O título, as fotos, o trecho. Tudo.

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  2. esse texto parece até um abraço de tão aconchegante que foi lê-lo!
    acabei de conhecer o blog e estou encantada! principalmente pelas fotografias, são autorais?

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