dezembro 2018
A felicidade sempre foi um negócio e uma obsessão. Os filósofos, desde que existem, tentam mostrar-nos o caminho. Assim como os padres. E os monges. E os ditadores. E os samanas. E os gimnosofistas. E os cientistas. E os nossos pais. Toda a gente quer encontrar a felicidade e, não sendo eles próprios felizes, pretendem enfiar a beatitude que não conquistaram pela goela dos outros. Quer um copo de água para empurrar? Pegam em discursos, em actos, em ramos de flores, em educação, em dinheiro, em poemas e canções e servem-nos o caminho para a felicidade. Educam-nos com histórias que terminam com o singelo «foram felizes para sempre». E não me refiro só à Bíblia, mas também aos contos de fadas e de príncipes e princesas. E a obsessão é tão grande que até aos aleijados como eu lhes é servida a esperança: o fantasma da ópera, o corcunda de Notre-Dame, Cyrano de Bergerac, a Bela e o Monstro, Pinóquio, o sapo. Haja esperança para todos, incluindo os batráquios que se tornam proeminentes membros da monarquia e se casam e, como quem se constipa, ficam com aquela doença do peito, o amor eterno. É que o amor corrige o mundo mas também aleija muito. Nesse processo, há dor e alegria, mas não o estado de euforia permanente. As pessoas felizes não são as pessoas que vivem a abanar a cauda. As pessoas felizes choram e temem e caem e magoam-se e gritam e esfolam os joelhos, porque a sua felicidade independe da roda da fortuna, do acaso, das circunstâncias.
Dito isto, e com a experiência e clarividência que fatalmente me contaminaram, sei exactamente qual é a fórmula da felicidade. Mas também sei que não adianta nada a ninguém. E basta olhar para o que acabei de escrever para encontrar a ignóbil contradição de estar vivo. Rejeito a felicidade para a poder conquistar. Abomino os negociantes da felicidade e tento, eu próprio, anunciar a sua fórmula.
Como alguém disse: está consumado. Espero que aprendas a viver com as feridas que fazem de nós formas imperfeitas, famílias imperfeitas, diferentes, cada uma à sua maneira. Repara como é estranho, talvez belo, talvez perverso, que as nossas dores sejam eixos da memória e nos marquem indelevelmente, ao mesmo tempo que nos salvam a vida: assim como a minha deformidade me salvou da guerra, a minha morte salvou-te a vida. E, mais ainda, a minha morte salvou-me a vida.
Afonso Cruz in Princípio de Karenina