Dornes | outubro 2018
O mundo, com todo este seu peso, esta bola sem começo nem fim, coberta de mares e de terras, toda esfaqueada de rios, ribeiras e regatos, a escorrer a aguazinha clara que vai e volta e é sempre a mesma, suspensa nas nuvens ou escondida nas nascentes por baixo das grandes lajes subterrâneas, o mundo que parece uma brutidão aos tombos no céu, ou silencioso pião como um dia o hão-de ver os astronautas e já podemos ir antecipando, o mundo é, visto de Monte Lavre, uma coisa delicada, um relogiozito que só pode aguentar um tanto de corda e nem uma volta mais, e se põe a tremer, a palpitar, se um dedo grosso se aproxima da roda balanceira, se vai roçar, mesmo de leve, a mola de cabelo, ansiosa como um coração. Um relógio é sólido dentro da sua caixa polida, inoxidável, à prova de choques até ao limite do que lhe for suportável, à prova de água para quem tiver o finíssimo gosto de tomar banho com ele, garantido por uns tantos anos, que poderiam ser muitos se não viessem as modas rir-se do que comprámos ontem, são maneiras de manter a fábrica o seu fluxo de mecanismos e o seu afluxo de dividendos. Mas, se lhe tiram a casca, se o vento, o sol e a humidade começam a girar e a bater por dentro dele, entre os rubis e as engrenagens, qualquer um de vós pode apostar, e ter a certeza de ganhar, que acabaram os dias venturosos. Visto de Monte Lavre, o mundo é um relógio aberto, está com as tripas ao sol, à espera de que chegue a sua hora.
José Saramago in Levantado do Chão