novembro'18
Obcecam-me certos filmes dos anos 70, a época imediatamente anterior ao meu nascimento. Sei exactamente o que me agrada nesses filmes: a fotografia limpa, vívida, incontaminada. Assisto a estes filmes como se pudesse apreender-lhes a luz impossível, saturada, sobrenatural, com uma vibração indecisa de aguarela, obsidiante às vezes como pintura flamenga. É, parece-me, a luz do mundo quando o mundo ainda me oferecia todas as possibilidades, incluindo a de não nascer. A luz do mundo antes de o mundo existir.
É um regresso claro ao ventre materno, ao escuro aconchegante de onde assisto à minha vida, onde encontro rostos e paisagens, mas sem risco, sem a inconveniência do toque, das relações que degeneram, sem ambiguidades que não sejam líricas e metafísicas.
É uma linha adjacente, um desvio vizinho à carne, uma imaginação extrema da carne enquanto a carne não nasce, não chegue talvez a nascer.
A busca incessante por certo tipo de imagens, pelas que correspondem ao meu prazer, é reacionária, uma rejeição da vida e do momento presente, um retrocesso coberto de mistificações. Uma cobardia, portanto.
Andreia C. Faria in Clavicórdio