Tia Maria do Céu | abril 2018
Além das horas matutinas ao piano, a minha mãe passava algum tempo, habitualmente depois do almoço, a cantar as canções da rádio, cujas letras diziam que era bom deitar cedo e cedo erguer, que os pobres são mais felizes, que a humildade enche a barriga, esse tipo de arrazoado, e eu ficava a vê-la e a ouvi-la, fascinado com os trinados a meia-voz e o tremor delicado dos lábios. A minha mãe falava pouco, por isso tudo o que dizia era precioso, e, quase sempre sob a aparência humilde da simplicidade, o conteúdo das frases era inusitado e ao mesmo tempo profundo. Posso, admito, pela raridade das conversas com ela, ter exagerado e engrandecido o que me disse e que recordo com o filtro do tempo, da maturidade, sobredimensionando agora o que de facto ouvi. Como dizia, a minha mãe passava horas a cantar as canções da rádio e um dia confessou-me que cantava, não necessariamente porque gostava muito das canções, mas porque gostava de cantar com milhares de pessoas. Na altura não percebi, mas hoje consigo imaginar a quantidade de mulheres, sim, especialmente mulheres, que, a passar a ferro, a lavar, a embalar os filhos, a cozer o feijão, a tricotar, a quantidade de mulheres que interrompiam o choro, que olhavam pela janela, que fechavam os olhos, a quantidade de mulheres que, ao mesmo tempo que a minha mãe, cantavam a mesma canção que ouviam na radio. Ela devia sentir uma espécie de comunhão, uma união estranha e subtil, uma fraternidade invisível que interrompia as suas dores para cantar uma canção em uníssono. Ela, quando sintonizava o radio, era para se sintonizar com as outras mulheres.
Não tinha o desejo de mudar o mundo, queria apenas fazer parte dele.
Afonso Cruz in Princípio de Karenina
Ainda ontem falava sobre o facto da música me trazer comunhão com o mundo que não compreendo e vice-versa.
ResponderEliminarA fotografia está deliciosa. *