14/07/19

Como num adorável devaneio









Nazaré | agosto 2018



  Embora fosse tão profundamente dúplice, eu não era de modo algum um hipócrita; ambos os lados de mim eram moralmente sinceros; eu não era mais eu quando estava de rastos, agrilhoado e mergulhado na vergonha, do que quando trabalhava, à luz do dia, na ampliação do conhecimento ou no alívio das penas e dos sofrimentos. E sucedeu que a direcção dos meus estudos científicos, que conduziam por inteiro ao místico e ao transcendental, reagiu e lançou uma forte luz sobre essa consciência da guerra perene entre os meus membros. A cada dia, e de ambos os lados da minha inteligência, o moral e o intelectual, fui-me assim aproximando cada vez mais dessa verdade, por cuja descoberta parcial eu fora condenado a um tão terrível naufrágio: a de que o homem não é na verdade um, mas dois. Digo dois, porque o estado do meu próprio conhecimento não vai além desse ponto. Outros se seguirão, outros me ultrapassarão nesta mesma via; e atrevo-me a adivinhar que o homem será finalmente conhecido como um mero agregado de habitantes múltiplos, incongruentes e independentes. Pela minha parte, dada a natureza da minha vida, avancei infalivelmente numa única direcção. Foi no lado moral, e na minha própria pessoa, que aprendi a reconhecer a profunda e primitiva dualidade do homem; vi que, das duas naturezas que se debatiam no campo da minha consciência, ainda que com razão se dissesse que eu era qualquer uma delas, isso era apenas porque eu era radicalmente ambas; e desde cedo, mesmo antes de o curso das minhas descobertas cientificas haver começado a sugerir a mais escassa possibilidade de um tal milagre, eu aprendera a insistir com prazer, como num adorável devaneio, na ideia da separação desses dois elementos. Se cada um deles, dizia eu a mim próprio, pudesse ser alojado em identidades separadas, a vida poderia ser aliviada de tudo o que era insuportável; o injusto poderia seguir o seu caminho, liberto das aspirações e do remorso do seu gémeo mais acertado; e o justo poderia prosseguir de modo resoluto e seguro no seu recto caminho, praticando as boas acções em que achava o seu prazer, não sendo já exposto à desgraça e à penitência pelas mãos desse mal alheio. Era uma maldição para a humanidade que esses feixes incongruentes estivessem assim ligados entre si - que no agonizante útero da consciência esses gémeos polares estivessem em eterno conflito. 

Robert Louis Stevenson in O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr.Hyde


Sem comentários:

Enviar um comentário