setembro 2020
A meio da noite, sem que me lembrasse do que estava a sonhar, acordei e senti uma angústia inexplicável. Uma culpa por toda a minha existência, pelo meu carácter, por todos os acasos que formam um carácter. Era uma condenação avivada pela luz dos candeeiros da rua que, pela janela aberta, vinha morrer aos pés da cama.
Como qualquer pessoa acusada de um crime que não concebe qual seja, gostaria de saber explicar essa angústia. Durou apenas um momento, mas creio ter sido uma experiência de medo puro, químico, abstracto. Algo como um acidente, uma nova cor sombria que, irrigando um canto do meu cérebro, me fizesse regredir a um estado primordial.
Não é raro, a meio da noite, se não consigo adormecer, que todos os medos venham conferenciar comigo. São medos que desde há uns anos se instalaram e, como velhos conhecidos que nos ensonam após o jantar, inibem-me de expulsá-los. Mas nessa noite não era nenhum deles.
Levantei-me para beber água. Caminhei pela casa estranhamente iluminada e senti uma pancada seca na nuca seguida de uma descarga, uma expurgação de todos os líquidos do corpo deixando-me cega, seca, rasa, pronta a não viver. Uma consciência exterior impunha-me esse medo, uma vaga culpa por ser, por ser quem sou, por existir e por um dia ir deixar de existir, como se também o lucro da morte me pudesse ser imputado.
E eu, perscrutando o sono fresco para perceber de onde vinha aquilo, voltei para a cama e adormeci.
Andreia C. Faria in Clavicórdio
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