14/11/20

Tem qualquer coisa

 

agosto 2020


  Tem qualquer coisa de arenoso e de amargo e de salino a pele que beijamos pela primeira vez. Qualquer coisa de moreno e turvo, um sarro que corresponde talvez à nossa culpa. Porque o primeiro toque significa uma cedência, uma desmoralização, o desmantelar do enxame de injunções paternas acerca do amor e do sexo, do medo e do desprezo infiltrados entre homens e mulheres, propagados de pais para filha, de modo que a primeira vez que tocamos um corpo desejado abatemos com grandes e assustados golpes os pequenos, secos, insinuantes insectos que toda a vida nos sopraram ao ouvido.

   Tem qualquer coisa de selva e de sujo essa pele pela primeira vez provada, terra em nome da qual deixamos ruir os nossos preconceitos, pela qual acedemos a fazer uma viagem incerta, uma guerra sobrenatural, pela posse da qual, em suma, aceitamos ficar órfãos. Abandonamo-nos tanto mais ao sebo desse excesso, ao prazer lento do pudor eviscerado, quanto difere do mel familiar, tecido boca a boca, límpido. Insípido de tão doce, já não nos consola.


Andreia C. Faria in Clavicórdio

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