18/11/18

Alpendre das traseiras


abril 2018


   Mas o que me incomoda é só ter reparado neles por acidente. Que outras coisas perdi? Quantas vezes na minha vida terei estado, por assim dizer, sentada no alpendre das traseiras, não no da frente? O que teria sido dito que não consegui ouvir? Que amor podia ter havido que não vivi?
São perguntas vãs. O único motivo por que vivi tanto tempo foi ter largado o meu passado. Fechar a porta à dor, ao arrependimento, ao remorso. Se os deixar entrar, basta uma nesga autocomplacente, zás, a porta abre-se por inteiro e eis que entra uma torrente de dor que me rasga o coração e me cega os olhos de vergonha, parte chávenas e garrafas, derruba frascos e estilhaça janelas, faz-me tropeçar, ensanguentada, em açúcar entornado e em vidros partidos, sufocando de pavor até que, num último estremecimento e soluço, fecho a porta pesada. Apanho os cacos uma vez mais.

Lucia Berlin in Manual para mulheres de limpeza


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