17/11/20

Como velhos conhecidos

 





setembro 2020




A meio da noite, sem que me lembrasse do que estava a sonhar, acordei e senti uma angústia inexplicável. Uma culpa por toda a minha existência, pelo meu carácter, por todos os acasos que formam um carácter. Era uma condenação avivada pela luz dos candeeiros da rua que, pela janela aberta, vinha morrer aos pés da cama.
Como qualquer pessoa acusada de um crime que não concebe qual seja, gostaria de saber explicar essa angústia. Durou apenas um momento, mas creio ter sido uma experiência de medo puro, químico, abstracto. Algo como um acidente, uma nova cor sombria que, irrigando um canto do meu cérebro, me fizesse regredir a um estado primordial.
Não é raro, a meio da noite, se não consigo adormecer, que todos os medos venham conferenciar comigo. São medos que desde há uns anos se instalaram e, como velhos conhecidos que nos ensonam após o jantar, inibem-me de expulsá-los. Mas nessa noite não era nenhum deles.
Levantei-me para beber água. Caminhei pela casa estranhamente iluminada e senti uma pancada seca na nuca seguida de uma descarga, uma expurgação de todos os líquidos do corpo deixando-me cega, seca, rasa, pronta a não viver. Uma consciência exterior impunha-me esse medo, uma vaga culpa por ser, por ser quem sou, por existir e por um dia ir deixar de existir, como se também o lucro da morte me pudesse ser imputado.
E eu, perscrutando o sono fresco para perceber de onde vinha aquilo, voltei para a cama e adormeci.    


 Andreia C. Faria in Clavicórdio


 






15/11/20

I trap you




 
I called it Love
I should have called it
Trap

I trap you! I should have said tenderly
At the end of a long day
While we kept each other
Desperately stagnant

I trap you so much!

Yes, I want you to be happy. But don't threaten my happiness
Can't you see I'm walking this threadbare tightrope?
Made out of dental floss stitched
together with strands of tobacco and dog hair
And it stretches between two precious fantasies – my fantasy of me
And my fantasy of you –
And beneath, in raging red chopped razor toothed states of fury
Are all my insecurities
And all the little lies I like to tell myself
And every other reason that I can't see the truth

'I trap you so much!'
I should have whispered in your ear as we fell asleep
Bodies unbound
Sheets soaked
Hearts hammering

If I see it clear will it stay clear?
Will it be clear when you're here?

I don't want fear I don't want greed
I want freedom I want to be freed
I want you to be freed

I want to nourish
I don't want to feed
Like some ravenous mouth
With no guts only greed
Endless appetite
Need
Need
Need

You can't free me
I free me
I breathe
If I am in pieces, is it easier to see?

I think I am whole now
I think I am more whole

But I still check my phone seventeen times a minute
To see if you called and I missed it

Trap

Love is a self-made thing

Love is a self-made
Trap


Kate Tempest - I Trap You


14/11/20

Tem qualquer coisa

 

agosto 2020


  Tem qualquer coisa de arenoso e de amargo e de salino a pele que beijamos pela primeira vez. Qualquer coisa de moreno e turvo, um sarro que corresponde talvez à nossa culpa. Porque o primeiro toque significa uma cedência, uma desmoralização, o desmantelar do enxame de injunções paternas acerca do amor e do sexo, do medo e do desprezo infiltrados entre homens e mulheres, propagados de pais para filha, de modo que a primeira vez que tocamos um corpo desejado abatemos com grandes e assustados golpes os pequenos, secos, insinuantes insectos que toda a vida nos sopraram ao ouvido.

   Tem qualquer coisa de selva e de sujo essa pele pela primeira vez provada, terra em nome da qual deixamos ruir os nossos preconceitos, pela qual acedemos a fazer uma viagem incerta, uma guerra sobrenatural, pela posse da qual, em suma, aceitamos ficar órfãos. Abandonamo-nos tanto mais ao sebo desse excesso, ao prazer lento do pudor eviscerado, quanto difere do mel familiar, tecido boca a boca, límpido. Insípido de tão doce, já não nos consola.


Andreia C. Faria in Clavicórdio

11/11/20

Passeio Micológico

 














novembro 2018


   


   Há dois anos fui a um passeio micológico. Sei o dia exacto - 10 de novembro - tinha combinado com o F., (que me falou disto) que no dia seguinte iríamos a um retiro intensivo e meio secreto de ioga, a acontecer no dia 11/11 porque haveria a abertura de um portal cósmico. Aconteceu que no dia seguinte o portal não se abriu e choveu copiosamente todo o dia, em pleno verão de S. Martinho.