29/11/18

I need to start a garden


abril 2018




And I've been doubtful
Of all that I have dreamed of
The brink of my existence essentially is a comedy
The gap in my teeth and all that I can cling to



28/11/18

Sintonizar

Tia Maria do Céu | abril 2018



   Além das horas matutinas ao piano, a minha mãe passava algum tempo, habitualmente depois do almoço, a cantar as canções da rádio, cujas letras diziam que era bom deitar cedo e cedo erguer, que os pobres são mais felizes, que a humildade enche a barriga, esse tipo de arrazoado, e eu ficava a vê-la e a ouvi-la, fascinado com os trinados a meia-voz e o tremor delicado dos lábios. A minha mãe falava pouco, por isso tudo o que dizia era precioso, e, quase sempre sob a aparência humilde da simplicidade, o conteúdo das frases era inusitado e ao mesmo tempo profundo. Posso, admito, pela raridade das conversas com ela, ter exagerado e engrandecido o que me disse e que recordo com o filtro do tempo, da maturidade, sobredimensionando agora o que de facto ouvi. Como dizia, a minha mãe passava horas a cantar as canções da rádio e um dia confessou-me que cantava, não necessariamente porque gostava muito das canções, mas porque gostava de cantar com milhares de pessoas. Na altura não percebi, mas hoje consigo imaginar a quantidade de mulheres, sim, especialmente mulheres, que, a passar a ferro, a lavar, a embalar os filhos, a cozer o feijão, a tricotar, a quantidade de mulheres que interrompiam o choro, que olhavam pela janela, que fechavam os olhos, a quantidade de mulheres que, ao mesmo tempo que a minha mãe, cantavam a mesma canção que ouviam na radio. Ela devia sentir uma espécie de comunhão, uma união estranha e subtil, uma fraternidade invisível que interrompia as suas dores para cantar uma canção em uníssono. Ela, quando sintonizava o radio, era para se sintonizar com as outras mulheres.
   Não tinha o desejo de mudar o mundo, queria apenas fazer parte dele.

Afonso Cruz in Princípio de Karenina 

26/11/18

Youth





And if you're still breathing, you're the lucky ones
'Cause most of us are heaving through corrupted lungs
Setting fire to our insides for fun
Collecting names of the lovers that went wrong


Daughter - Youth

25/11/18

You'll never get to heaven



 abril 2018





Tonight the sky is set ablaze with blue
Above a burning flame all around you
Placid memories
Keep you warm while you‘re asleep
Amid idle speed abound
Life is bleak beyond the clouds

24/11/18



Gastámos todos os bancos de cinema 
mas 
faltaram-nos argumentos para um final feliz.


   

23/11/18

I, Daniel Blake

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 "I am not a client, a customer, nor a service user. I am not a shirker, a scrounger, a beggar, nor a thief. I'm not a National Insurance Number or blip on a screen. I paid my dues, never a penny short, and proud to do so. I don't tug the forelock, but look my neighbour in the eye and help him if I can. I don't accept or seek charity. My name is Daniel Blake. I am a man, not a dog. As such, I demand my rights. I demand you treat me with respect. I, Daniel Blake, am a citizen, nothing more and nothing less."


I, Daniel Blake - Ken Loach (2016)

22/11/18

O Caminho Imperfeito






José Luís Peixoto | junho 2018



   Gostava de ser uma daquelas pessoas habilidosas que driblam as palavras com a língua e as usam a seu favor. Acontece que, nos momentos que mais importam, o coração bate tão descompassado que parece que todos à minha volta o ouvem também e a minha boca torna-se um deserto que seca as palavras tão bem ensaiadas que nunca me chegam a sair. De qualquer forma, que palavras serviriam para dizer a alguém que inaugurou a minha categoria de autores preferidos (como sempre tive para a musica)? Que não sei como seria hoje se não tivesse sido atraída por um livro com um gato preto na capa, na biblioteca da escola secundária, que me ajudou a encontrar um caminho para chegar a mim própria e a ver na escuridão que carregava material para fazer casa, a beleza que existe no meio do caos. Que foram as palavras que me fizeram deixar de ter medo do escuro e que nunca saberei como agradecer uma coisa assim.



18/11/18

Alpendre das traseiras


abril 2018


   Mas o que me incomoda é só ter reparado neles por acidente. Que outras coisas perdi? Quantas vezes na minha vida terei estado, por assim dizer, sentada no alpendre das traseiras, não no da frente? O que teria sido dito que não consegui ouvir? Que amor podia ter havido que não vivi?
São perguntas vãs. O único motivo por que vivi tanto tempo foi ter largado o meu passado. Fechar a porta à dor, ao arrependimento, ao remorso. Se os deixar entrar, basta uma nesga autocomplacente, zás, a porta abre-se por inteiro e eis que entra uma torrente de dor que me rasga o coração e me cega os olhos de vergonha, parte chávenas e garrafas, derruba frascos e estilhaça janelas, faz-me tropeçar, ensanguentada, em açúcar entornado e em vidros partidos, sufocando de pavor até que, num último estremecimento e soluço, fecho a porta pesada. Apanho os cacos uma vez mais.

Lucia Berlin in Manual para mulheres de limpeza


14/11/18

A fé numa qualquer beleza



abril 2018





   
   "Há uma única via. Entre dentro de si. Investigue a razão que o leva a escrever, veja se ela lançou raízes no lugar mais recôndito do seu coração, pergunte se morreria caso fosse impedido de escrever. Acima de tudo, na hora mais silenciosa da noite, pergunte a si próprio: tenho de escrever? Escave dentro de si até encontrar uma resposta profunda. E se esta resposta for afirmativa, se puder enfrentar esta séria pergunta com um «tenho» simples e forte, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade; a sua vida, mesmo nas horas mais indiferentes e pequenas, terá de ser um sinal e um testemunho desse ímpeto. Aproxime-se então da Natureza. Tente então dizer, como o primeiro homem, o que vê e o que vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite por ora as formas mais comuns e correntes: são elas as mais difíceis, pois só uma grande força, já amadurecida, conseguirá criar uma coisa própria por entre a abundância de boas e por vezes brilhantes prestações. Evite por isso os motivos gerais e prefira aqueles que o seu quotidiano lhe oferece; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a fé numa qualquer beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, modesta, e para lhes dar expressão sirva-se das coisas que o rodeiam, das imagens dos seus sonhos e dos objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parecer pobre, não o acuse de pobreza; acuse-se a si próprio, reconheça que não é ainda poeta o bastante para conseguir invocar as suas riquezas; pois para um criador não há pobreza e nenhum lugar é indiferente e pobre. E mesmo que estivesse numa prisão, cujas paredes separassem os ruídos do mundo dos seus sentidos, teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e imperial, a câmara do tesouro da lembrança. Dirija a ela a sua atenção. Tente levantar as sensações submersas desse passado longínquo; a sua personalidade fortalecer-se-á, a sua solidão estender-se-á até se tornar uma casa à luz do cair da tarde ou do amanhecer, por onde o ruído dos outros passa à distância. E se, depois deste movimento de introspecção, depois deste mergulho no seu próprio mundo, se depois nascerem versosjá não lhe ocorrerá perguntar a alguém se eles são bons.  


(...)

   
   A boa obra de arte nasce da necessidade. É esta origem, e nada mais, que determina o juízo do seu valor. Por esta razão, caro Senhor, não posso dar-lhe outro conselho para além deste: entre dentro de si e sonde as profundezas donde brota a sua vida; é nesta fonte que encontrará a resposta à pergunta: tenho de criar? Admita a resposta, qualquer que ela seja, sem a interpretar. Talvez venha a descobrir que nasceu para ser artista. Nesse caso, aceite o seu destino, carregue o seu peso e grandeza, sem perguntar por proveitos que possam vir de fora.



(...)



   Talvez aconteça que, depois desta descida dentro de si e da sua solidão, tenha que renunciar a ser poeta; (como disse, basta sentir que se consegue viver sem escrever para não dever sequer tentá-lo). Mas mesmo então este exame de consciência que o insto a fazer não terá sido em vão. A sua vida encontrará em todo o caso os seus próprios caminhos, e que eles sejam bons, ricos e longos é o que eu lhe desejo mais do que consigo dizer."

Rainer Maria Rilke in (Primeira Carta), Cartas a um jovem poeta 

09/11/18

O caminho










Coimbra | fevereiro 2018




   Estamos aqui, o caminho também é um lugar.


José Luís Peixoto in O Caminho Imperfeito

08/11/18

Paterson

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Poetry in translations is like taking a shower with a raincoat on.

Paterson, Jim Jarmusch (2016)


07/11/18

Aves





fevereiro 2018




Ao contrário dos humanos, que raramente voam, elas 

deleitam-se no voo, mas ainda ao contrário dos humanos 
é muito raro que o façam na direcção de uma gaiola.

Rui Caeiro

04/11/18

O mundo prossegue a sua marcha






fevereiro 2018




   O mundo prossegue a sua marcha. Nada tem grande importância, não é? Quer dizer, mesmo importância. Mas depois, por vezes, durante um segundo, é-se abençoado com uma graça, uma convicção de que as coisas importam, que importam muito.

Lucia Berlin in (Vadios) Manual para mulheres de limpeza

03/11/18

Beacon




Can we go back to that time?
Back to that life?

Back your time?
Back your life?



Tess Roby - Beacon

02/11/18

Um de novembro


   gosto de pensar nas campas como toalhas estendidas onde as almas se deitam a apanhar banhos de sol ou de lua (conforme preferências individuais e condições meteorológicas) quando, finalmente, os portões se fecham e os vivos regressam a casa.